sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Relações matrimoniais ou patriarcais?

Autor: J. Pietro B. Nardella-Dellova

"Aquele que encontra uma mulher encontra uma coisa boa, e alcança a bênção do Eterno."
Mishlei (Provérbios) 18:22

Das muitas relações entre pessoas, a mais complexa e a mais confusa, certamente, é a relação matrimonial. Porque para todas as outras existe uma estrutura adequada ao conteúdo, mas, para a relação matrimonial, a estrutura está em desarmonia flagrante com o conteúdo.

Os laços de afetividade entre um homem e uma mulher não resistem aos trancos de uma estrutura arcaica e inadequada aos novos tempos porque simplesmente não houve uma evolução no pensamento e nem uma tomada de consciência matrimonial.

Esta relação matrimonial é regida por um conjunto de Leis que, salvo alguns avanços, continua sendo inspirado pelo princípio patriarcal, ou seja, o homem é o chefe da sociedade conjugal, apesar da discutível igualdade determinada pela Constituição Federal do Brasil

E por que esta relação que é tão simpática de início, que goza da reputação quase santificada e que, constitucionalmente, é a base da sociedade, fica perdida num labirinto de angústias e aflições?

Porque tudo indica, tanto o conhecimento mítico quanto o histórico, no que respeita à base cultural do Ocidente, isto é, o mundo greco-romano, piorado muitas vezes pelos desdobramentos medievais, que o homem tem um medo tenebroso da mulher, porque desde os primórdios da humanidade ela se apresenta, aos seus olhos, como se um demônio fosse .

Dois são os motivos básicos de tal medo. O primeiro, refere-se àquele sentimento antigo de virilidade e potência masculinas que, obviamente, não podiam ser disfarçadas. A virilidade e a potência sexuais não podiam ser colocadas em xeque. Para os homens antigos e para tantos outros da atualidade, completamente despreparados ou mal-influenciados, a situação masculina não pode ser frustrada. Daí porque textos da mitologia grega e, por plágio, romana, apresentam a mulher sexualmente ativa e dominante, aquela que procura o homem e o desafia, como inadequada, tendo que ficar em redutos “idealizados”. Não é de causar estranhamento que uma das propostas de Platão era a de constituir-se uma comunidade de mulheres que serviriam unicamente ao propósito de reprodução. Também, entre os gregos e romanos e, outra vez, entre os medievais, a mulher não poderia participar de quaisquer atividades públicas.

Não é à-toa que o período medieval vai inspirar e influenciar em certa medida todo o movimento romântico europeu, no qual a mulher é vista como deusa ou como estrela. Deusa e, assim, intocável. Estrela e, assim, inatingível. Também, não causa estranhamento que os perfis femininos são desenhados e acabados na Idade Média: ou a mulher é Lilith, a sensual e ativa; ou a mulher é Eva, a pecadora; ou a mulher é Maria, a mãe. Se é uma, não pode ser outra!

É neste ponto que o homem passou a controlar a vida da mulher. A mulher deve ser aquela que ele quer, que ele escolhe e que ele procura, pois assim, jamais será frustrado sexualmente. A mulher deve, também, ser aquela a quem o homem possa acusar dos males do mundo. Por isso mesmo, a partir da rejeição de Lilith, a mulher adequada ao homem é Eva: a que foi feita a partir do homem. Culpada eternamente da maldição divina com o fim da vida edênica, e, igualmente, culpada por ter gerado e dado o nome, ao primeiro homicida da Terra: Caim. E assim, como culpada, deverá submeter-se ao homem, e aceitar um regime patriarcal de casamento. Deverá abandonar o seu nome e adotar o nome de seu marido (a marca do seu dono). Situação humilhante que só não será pior, porque o homem concederá a ela desenvolver uma face singular: a de Maria, a mãe.

Obviamente, que todas estas leituras acerca da mulher são equivocadas e feitas, não à partir da Bíblia (me refiro à Torah, os cinco primeiros livros), mas da base grega e romana, pilares da religiosidade medieval. Pois, qualquer que se dobrar em uma leitura atenta e, sem entulhos, da Torah, verificará que a mulher ali nada tem a ver com os conceitos de Lilith, de origem persa; de Eva ou de Maria, de origem e desenvolvimento católico-protestante.

E nem falarei aqui do conceito da mulher vista pelo ângulo muçulmano, ao menos, por agora!

O segundo motivo é o grau de sensibilidade e inteligência, que na mulher é muitas vezes superior ao do homem. Normalmente, o homem é apenas força bruta e muscular, rispidez e ignorância. E para sustentar a força bruta, está condenado a levantar barras de ferro, cada vez mais pesadas e, igualmente condenado, a comer, incessantemente, como um boi diante do cocho. Ao contrário, a mulher para sustentar a sensibilidade e a inteligência, em vez de musculatura, possui um tecido epitelial que capta quaisquer brisas, e, em vez de cocho, está sempre diante de uma mesa delicadamente preparada. O homem é relação pornográfica, a mulher é relação poética !

Assim, considerados esses aspectos, que caracterizam o homem e a mulher, é fácil compreender os conflitos de uma relação matrimonial (que na verdade é patriarcal). A estrutura é para o serviço do homem, para atender o homem, mas não suporta a redescoberta e o renascimento da mulher nestes últimos anos.

A atual estrutura não suporta, por exemplo, uma mulher que se descubra na Torah, que perceba os valores e aspectos das nossas matriarcas e que exija, entre outras coisas, ser tratada como aquela amada de “Cânticos dos Cânticos, de Sh’lomo”.

Por um outro lado, é preciso que o homem se convença do equívoco na leitura da mulher e dos conceitos em relação a ela desenvolvidos, assim como, dos preconceitos. Cabe aí uma redescoberta criadora de ambientes propícios para o seu desenvolvimento; refiro-me à redescoberta da mulher pelo homem, não como “algo”, ou uma “coisa”, ou um “espírito”, mas uma pessoa completa. Ou, simplesmente, da descoberta de que ela é gente apenas ao seu lado.

Assim, falta ao homem uma melhor leitura, sobremodo, da Torah, não com olhos greco-romanos, mas judaicos!

Porque após milênios de patriarcalismo sufocante, religiosidade machista, o resultado é que a mulher reapareceu com todo o seu vigor poético, com toda sua sensibilidade e com toda sua inteligência determinante, e encontrou o homem contemplando, ainda (e por desgraça), os seus próprios órgãos.

Relações conjugais

do Mestre J. Pietro B. Nardella Dellova

"Que belos são os teus amores, esposa minha...
mel e leite estão debaixo da tua língua...
o teu umbigo é como uma taça redonda na qual não falta vinho...
beije-me ele com os beijos da sua boca...
eu sou do meu amado e o meu amado é meu..."
Shir Harishim (Cânticos dos cânticos)

É preciso avançar. Descobrir algo mais que a futilidade dos dias e a superficialidade dos casamentos, sobremodo as relações de homem e mulher. Superando os obstáculos cotidianos, é possível entender que esta relação é, ou na verdade, deveria ser, um encontro. Encontro de humanos que constróem um diálogo: humanizam. O encontro estabelece, vez por todas, a perfeição, em que emissor/receptor se confundem, se plenificam e se compreendem, num processo único e intenso de mensagem/resposta, por códigos verbais/não verbais. Principalmente, não verbais, pois que outro código é necessário, quando naturalmente as pupilas dos olhos e os lábios da boca dilatam-se, numa demonstração convidativa? É como ouvir, olhando estas pupilas e estes lábios: “entre, ilumine e acomode-se na intimidade da minha casa”.

Por que portas se pode entrar? Por todas as que a natureza deu aos seres humanos: pois eles se vêem, eles se ouvem, eles se cheiram, eles se beijam e, finalmente, eles se tocam num toque suave e inconfundível. E não se despreze nenhuma destas portas sob pena de morte, porque cada uma, e todas elas, conduzem à intimidade, ao mais profundo, ao centro da pessoa amada, enfim, ao que ela é –ninguém sabe quem ela é, senão quem ama, entra e ilumina. A isto os judeus chamam bênção de D’us, plena de substância que é, a um só tempo, entranhavelmente bom, muito bom, e universalmente maravilhoso.

Não é sem motivo que o vinho seja a expressão deste encontro (ninguém em sã consciência bebe do vinho sozinho). Vinho é bebida para dois que se encontram e tornam-se um, transformando suas bocas e seus umbigos em cálices: pois é na boca e no umbigo que se derrama do vinho e dele se bebe. O vinho que é, o vermelho da sua cor, o perfume da sua essência, o sabor das suas uvas, o toque que enche a boca e o brinde dos corpos que se abençoam. Quem for apressado, infeliz e ébrio, beba aguardente, conhaque, cerveja e outros venenos, mas, no umbigo e na boca dos que se amam apenas vinho e, na casa íntima, somente os que portam a luz e a poesia: a chave!

Porque eles, os que se amam, não são o balcão de um boteco, onde os insípidos, os trêmulos e os egocêntricos buscam ouvidos para as suas mágoas e um copo qualquer em que possam afogá-las. Os que se amam são a mesa aparelhada e posta, na qual dedicam seus ouvidos (e seu íntimo) e oferecem suas mãos, para com elas, abençoarem o encontro, e somente com elas, partirem o pão e, embebendo-o no vinho, o depositarem na boca do ser amado.

É um processo de vida, no qual cada raiz será recoberta com boa terra, e cada boa terra ungida com água fresca e, a alegria indizível e inegociável, é ver as flores se abrindo às borboletas e às abelhas e, o fruto, tomando forma e cor, substância e paladar, oferecendo-se a todos os sentidos: às mãos, à boca, aos olhos, ao nariz e ao ouvido, ligados por alma, espírito e corpo: pelo amor. Em que cada poro não é desconhecido, nenhuma mudança de cor ou temperatura passa despercebida, e o pulsar do peito se converte em notas ao ouvido do músico-poeta, e somente ele as ouve e as pinta na partitura.

É a harmonia: o humano se respeita e se reconhece gente apenas. A presença de um e de outro é não menos que um acontecimento vivificador : e ao menor sinal de aproximação a menor parte do corpo estremece, se robustece e se agiganta e a alma se abre como um manto, que se faz céu, que se faz universo sem medida e sem fim. E nada perturba, nada incomoda, nada se interpõe, nada falta. Tudo é belo: tudo é estado de graça!

É, então, o amor de entrega, a comunhão, a ternura, a leveza da alma e do corpo, o convite, o pão e o vinho, o caso, a leitura de Vinícius e Sh’lomo, o beijo íntimo e demorado, a lua e pilhas de estrelas que se contam calmamente, o verde da serra, a brisa do mar azul, a audição de J. S. Bach, o caffè, o respirar, o peito e a alegria das águas que saltam de fontes.

E se não for assim, exatamente assim, é, então, o estupro tolerado, a conveniência, a tortura, a morte da alma e do corpo, a violação, o churrasco e a cerveja, o descaso, a novela, a fita pornô e pilhas de filmes da promoção, a fila sebosa e interminável para o litoral, a areia nos cabelos, a discussão de contas, o shopping center, o ronco, as costas e o peso dos rios que se arrastam.